O texto abaixo retrata a cultura da desumanização do trânsito brasileiro e a banalização da vida num contexto onde ser permissivo parece ser o "politicamente correto". No entanto, quando tratamos de VIDA, humanamente correto é viver e deixar que os outros vivam. Não é normal nem aceitável que os números colossais de acidentes, sobremaneira os com vítimas fatais, virem notícia que impacta de um dia para o outro, mas que na semana seguinte já foram esquecidos pois a mídia metralhou a opinião pública com notícias vazias, que não vão mudar nossas (das pessoas pensantes) vidas.
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Por Luiz Flávio Gomes
Com um Porsche em alta velocidade (116
km/h) um engenheiro matou uma advogada. E disse: “Estava nos planos de
Deus”. O Brasil é um dos campeões mundiais em mortes no trânsito (mais
de 42 mil, em 2010).
Montesquieu, Beccaria e todos os iluministas
diziam, no século XVIII, que “causas de atos indesejados” são as leis
injustas assim como a existência de humanos irracionais, supersticiosos e
“não ilustrados”. O que mais existe no Brasil, no entanto, é gente
pouco ilustrada (3/4 da população não sabem ler ou escrever ou não
entendem o que lê ou não sabem operações matemáticas mínimas – pesquisa
Inaf).
As mortes no trânsito, de qualquer modo, são geradas por
todos (ilustrados ou não ilustrados). Somos rigorosos e exigentes com o
Estado. Cobramos dele duramente o cumprimento dos seus deveres (de
fiscalização, de engenharia das estradas, de primeiros socorros e de
punição). Mas normalmente descuidamos dos nossos.
Ato típico de povo
mal educado para a cidadania, ou seja, muito pouco domesticado (como
dizia Nietzsche), independentemente da classe social. Dirigimos depois
de beber ou em alta velocidade e atropelamos pedestres e ciclistas nos
julgando “ases no volante” e protegidos por forças superiores.
A
cultura da irresponsabilidade está impregnada no nosso DNA. Não somos
treinados para a prevenção. Não abrimos mão dos nossos prazeres (beber,
falar ao celular, correr etc.) para privilegiar nossos deveres de
cidadania e convivência coletiva. Estatisticamente, 75% dos acidentes
derivam de falhas humanas (destaque para a imprudência e o álcool).
Nenhuma morte como “plano de Deus” aparece na estatística.
O
brasileiro é pacato (dizem), salvo na direção do veículo, na violência
machista, na agressão dos pais contra as crianças, nas ofensas aos
idosos, nos estádios de futebol, nas manifestações… O Detran de SP, por
exemplo, só investe 0,05% do dinheiro de multas em educação para o
trânsito (Folha de S. Paulo de 01.08.12, p. C1). Isso não escandaliza.
Também nós não nos educamos, muitas vezes nem sequer para a vida (do
contrário, ¾ da população não seriam analfabetos ou precariamente
alfabetizados).
A conscientização, a responsabilidade individual, a
noção de cidadania e o respeito ao outro são a solução para menos mortes
no trânsito. Quem já alcançou isso? Os países adeptos do capitalismo
financeiro evoluído e distributivo (Dinamarca, Coreia do Sul, Noruega,
Japão, Canadá etc.). Colhem os bons frutos da educação universal, têm
baixíssima violência, trânsito seguro e alta qualidade de vida.
Nos
países de capitalismo financeiro selvagem e extrativista, moralmente
degenerados, ao contrário, prospera o ignorantismo e a superstição (não a
responsabilidade individual, o imperativo dos deveres e o aprimoramento
ético). O homo democraticus do século XXI, nesses países, abusa da sua
vulgaridade e irresponsabilidade.
Temos ojeriza a obedecer às leis
assim como à igualdade no trânsito. Nunca imaginamos que o “vermelho” é
“vermelho” para todos (ricos e pobres, pretos ou brancos).
Na nossa
cultura hierarquizada, os membros das classes superiores (A e B) se
sentem no direito de ter privilégios frente ao sistema legal (DaMatta).
Concordamos que os motoristas irresponsáveis sejam punidos severamente,
mas não observamos as regras de trânsito (ultrapassamos em lombadas e
andamos no acostamento e na contramão).
A possibilidade de um
acidente aumenta 23,2 vezes quando se digita uma mensagem ao volante
(Valor Econômico de 30.03.12, p. D8): isso é corriqueiro e ainda
trafegamos sem cinto de segurança, com luzes queimadas ou freios não
revisados.
Observar as leis no Brasil, como se diz, é coisa de gente
idiota, tola, inferior, sem relações sociais e sem os capitais
distintivos de classe (econômico, salarial, cultural, social, emocional,
moral/ético e familiar). Nós, tolos não somos; somos imbecis (muitas
vezes).
Luiz Flávio Gomes é jurista e professor. Fundador da
Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi
Promotor de Justiça (1980 a 1983)
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