quarta-feira, 25 de maio de 2016

A heroína

Histórias de Rodovia: a heroína

Plantão anterior estávamos eu e meu parceiro retornando de atendimento de uma demanda próxima a Unidade Operacional PRF quando recebemos acionamento da Central informando acidente com vítima, a poucos quilômetros de onde estávamos.
Bem rápido chegamos ao local e logo visualizamos o cenário: 1 automóvel atravessado sobre a pista; outro veículo, uma caminhonete, fora da pista, próxima a uma árvore. Várias pessoas do local ajudavam a sinalizar, outros auxiliavam uma técnica em enfermagem e o condutor da ambulância da cidade próxima que haviam chegado antes de nós. Ah, não há Corpo de Bombeiros próximo! Esses 2 "socorristas" transportavam em uma prancha uma jovem senhora desacordada, enquanto ao lado caminhava seu também jovem esposo com uma criança de idade não superior a 2 anos, com seu corpo todo ensanguentado. Não só caminhava, como gritava: "foi aquele cara do Gol, culpa dele, policial!".
O "cara do Gol" logo foi localizado, ainda assustado e reportou sua versão do acidente para essa equipe PRF. Versão que posteriormente revelou-se consoante com a do condutor da caminhonete, bem como foi avaliada coesa com os vestígios observados no pavimento, caracterizando a dinâmica do acidente de trânsito.
Descrevendo o cenário: o veículo Gol realizava uma ultrapassagem sobre um caminhão (evadido do local), quando foi seguido pela caminhonete S10 (o que chamo de ultrapassagem cega); após concluir a ultrapassagem o condutor do Gol perdeu o controle da direção em virtude de irregularidades no pavimento (a pista está em reforma, sinalizada e eles já vinham nessa situação a aproximadamente 3 Km), quando a caminhonete S10 foi atingida lateralmente, fazendo com que seu condutor também perdesse o controle da direção, vindo a derrapar e sair de pista, capotando.
Ao descrever o cenário e acabar indo pra dinâmica, tento fazer com que imaginem o capotamento de uma caminhonete cabine dupla, carregada, com 3 ocupantes e numa velocidade provavelmente acima de 100 Km/h (uma vez que realizava ultrapassagem sobre um caminhão em declive)...
Conseguiu imaginar?
Não, tenho certeza que você não pode dimensionar o poder da inércia! A passageira do banco dianteiro Sra Sierra Fox e seu marido (e condutor) Sr Romeu Dobrado também não poderiam prever seu poder! Essa palavra inércia, cujo significado no contexto trânsito é sinônimo de tragédia, se fez prevalecer como nunca; se fez absoluta como sempre; se fez um Trebuchet para lançar mãe e filha pela janela da porta dianteira direita por meio da copa de uma árvore e repousarem a aproximadamente 10m da posição final do veículo. Repousar?!? A mãe repousou o sono eterno, enquanto a filha não dormiu, de tão assustada estava com o poder da alavanca da ignorância; com a ingenuidade de uma criança de menos de 2 anos que ainda não estudou física como seus pais (será que estudaram mesmo?); com a proteção divina. Divina é a mão que deve receber aquela jovem senhora no plano espiritual, pois aqui na Terra, restará sua filha a crescer precisando da mão de terceiros (com quem ela não tem laço umbilical) para seguir a caminhada.
É choro! Choro de criança que viajava sentada na cadeirinha (há muito estudada pelos técnicos para que pudesse oferecer segurança para esses seres tão frágeis) que fez com que a mãe se desprendesse de seu cinto de segurança logo depois de passar pelo posto PRF (enganação que atinge grande parte dos usuários da via) e retirasse do dispositivo de retenção/cadeirinha (com o veículo em movimento) aquela criança para acalentar. Bem, não deu muito certo... Aquele choro poderia ser evitado de diversas formas, poderia ter sido controlado de diversas outras, mas como a vida é feita de escolhas, Sra Sierra Fox preferiu fazer do jeito menos racional. Esse apontamento nem sou eu que estou fazendo, foi seu marido em depoimento horas depois do ocorrido, ainda sem ter a real noção do estrago irreversível da escolha de sua companheira. Pode até ser que aquela criança tenha parado de chorar ao ser retirada da cadeirinha, mas quantas vezes mais vai chorar sem sua mãe ao longo da vida??? Essa pergunta martela na minha cabeça continuamente desde aquele dia.
E onde é que entra a heroína na história, PRFoxxx? No discurso do Sr Romeu Dobrado, que ainda no hospital ao saber da morte de sua esposa (politraumatizada) começou a bradar que ela era uma heroína por ter se agarrado à criança quando na iminência do capotamento... Pode até ser que o instinto materno tenha feito diferença naquele voo de 2 corpos inertes no Trebuchet e a armadura daquela mãe tenha protegido a criança na queda, mas eu sinceramente acho improvável.
Considerada a distorção no termo heroísmo atualmente (depois que Pedro Bial chama BBBs de heróis, lascou tudo), para muitos pode até soar plausível o sr Romeu Dobrado pregar que sua esposa foi uma heroína, sobretudo porque ele deverá criar a filha falando que a mãe sacrificou sua vida por ela, MAS para mim (sem julgar), acho que irresponsabilidade não combina com heroísmo. Tivesse ela pedido para parar o carro em local seguro (neste trecho, em 18 Km há no mínimo 4 locais para isso, incluindo o posto PRF) e resolvido aquele choro, acalmado a criança e evitado o mal maior lá na frente. Tivesse ela doutrinado sua criança a viajar na cadeirinha sem resistência. Tivesse ela utilizado fatores de distração (só quem é pai/mãe sabe o poder de um vídeo infantil no celular, por exemplo). NUNCA tivesse ela optado por retirar sua filha daquele sítio seguro e transportado no banco dianteiro. NUNCA tivesse ela tirado seu cinto de segurança e virado uma estatística, deixando órfã aquela linda garotinha.

Heroína mesmo é minha mãe, que mesmo sem estudo e mesmo sem saber conceito de inércia, me ensinou que o correto deve sempre prevalecer! Ainda que as leis de trânsito não sejam perfeitas, nunca se deve negligenciar critérios de segurança, pois neste caso o detalhe (menosprezado por muita gente) faz diferença entre vida e morte.

PRFoxxx

quarta-feira, 11 de maio de 2016

A toalha caiu

Há algum tempo publiquei um texto em que eu falava sobre ter jogado a toalha, estava apenas aguardando ela cair (baita eufemismo, de um brasileiro que toma porrada todo dia, mas "não desiste nunca").


Caiu!



Caiu que chegou a fazer barulho. Bateu pesado no chão. Peso do comodismo e do medo!



Do comodismo

Desde que entrei na PRF, há 7 anos, sempre bradei que não estudaria para outro concurso... que tinha entrado no emprego da minha vida... que eu tinha nascido para fazer isso. Não menti! Aqui me acertei, amo a atividade sem rotina, adoro trabalhar na escala (mesmo sabendo que ficar sem dormir e me alimentar incorretamente vai me tirar anos de vida lá na frente). Porém, ao afirmar essa aceitação, me fechei para outras possibilidades, mesmo sabendo que se eu continuasse estudando teria chance real de passar em outro cargo e, inclusive, com carreira/remuneração mais atrativos. Me acomodei não só no cargo, mas no cenário em que me encontrava. Minha lotação inicial (e única) me fez vir morar numa excelente cidade, trabalhar num bom trecho (sem histórico de corrupção, com chefia que me dava e ainda me dá liberdade de ação = autonomia) e enquanto estava solteiro a grana rendia bem. É quase inevitável a gente dar aquela "relaxada" e achar que tudo está tranquilo, está favorável. Mas as coisas mudam. O cenário muda. A cabeça muda!
Vi a minha remuneração estagnar, meu poder de compra reduzir, as despesas aumentarem, enquanto outras carreiras até menos expressivas (não digo menos importantes) e de leque menos amplo de atribuições terem um salto no Plano de Cargos, Carreiras e Salários graças aos seus sindicatos com articuladores sagazes enquanto na PRF há um sistema sindical manso, às vezes covarde, e sobretudo ingênuo. Vi até PRF sair para o DEPEN, quando antes era sempre esse departamento que perdia servidores para a PRF... é o poste mijando no cachorro!!!
De uma coisa não posso reclamar (chega a ser contraditório): ter ficado aqui neste cargo, nesta cidade, mudou muito minha vida para melhor. Talvez em outro órgão e em outra lotação eu estivesse ganhando mais, mas será que eu estaria tão realizado como estou agora? Ficará sempre a dúvida.


Do medo

O que é um policial com medo: É a mesma coisa de um médico que treme? De um jornalista gago? De um professor sem didática?
A cada plantão que coloco meu uniforme, me equipo e vou para a pista, vou com medo!
1) Medo de tomar uma invertida do infrator: depois que recebi um processo de recurso de autuação e revisão de boletim de acidente de trânsito que fiz, em que o impetrante imputava crime à minha conduta com o simples ânimo de alterar os apontamentos e dar o golpe na seguradora usando o agente público para isso, passei a trabalhar com medo. Medo dessa ética nojenta de advogados inescrupulosos, que por conta de uns trocados do seu cliente, podem (inclusive blindados pela OAB) imputar crime à conduta do agente público, que pode culminar inclusive em sua demissão (além de implicações na esfera penal).


2) Medo de tomar uma invertida do bandido: depois que o seu advogado apontou no MPF a mim e mais 3 colegas como supostos "invasores de residência" numa ocorrência de flagrante, com a mesma ética nojenta do "profissional" do exemplo anterior, forjando conduta reprovável e tornando assim o flagrante nulo (manobra porca); passo também a combater o crime com medo de a qualquer hora "ir para a rua" porque algum advogado de porta de cadeia me sacrificou para salvar seu "cliente".



3) Medo de tomar uma invertida do parceiro: por incrível essa é minha atual preocupação no serviço, pois nos outros 2 exemplos anteriores, de certa forma já aprendi a me precaver. Mas essa nova modalidade de acuar o policial vem de dentro da própria instituição. Vem de uma doutrina de ensino que pega jovens entrando no serviço público, grande parte formados em faculdades de direito, e os forma teóricos medrosos. Fui novato, senti receio em alguns procedimentos, fiquei inseguro ao fazer algumas autuações, mas NUNCA fui um cagão que deixaria meu parceiro na mão. Hoje estou sujeito a dividir equipe com colegas que, mesmo com a ocorrência "pulando no colo" (indícios de autoria de crime ou flagrante explícito), ainda pensem em montar um conselho deliberativo, juntar jurisprudência, avaliar mérito, discutir rito processual e etc para poder encaminhar a ocorrência a autoridade policial. Autoridade policial essa que é o primeiro filtro jurídico da coisa. Tem base para levar a ocorrência? Encaminha, p*rra! Se o delegado não receber, terá que fazê-lo com motivação e deverá ser explicitados os motivos. Não cabe ao policial ostensivo ficar fazendo "considerandos" lá na pista. Não cabe ao agente advogar em causa do infrator. Tem gente que confunde o in dubio pro reo com o ser advogado do diabo! Estamos aqui para aplicar a lei, mas se essa lei deixa dúvidas de interpretação, não cabe a nós ficar com ponderações quando a tomada de decisão requer segundos. Nessa ótica, aquele colega que saiu da academia como um cagão com diploma na mão, será o que me deixará na merda na hora do confronto. Ele não será capaz de atirar primeiro, pois ele acha que polícia só pode revidar injusta agressão, pois o perigo iminente não o deixa agir. Se ele chegar a sacar a arma e atirar, dará somente 2 tiros, pois ficará com medo de dar mais e ir contra o que prega a doutrina (mesmo que tenha recebido uma rajada de fuzil 7.62). Esse colega vai tomar um pau de um manifestante, mas não usará o Dispositivo Condutor de Energia (Taser), pois terá medo de haver alguma câmera ligada e ele ser tachado de torturador. Ele não fará uma autuação de trânsito por ultrapassagem em faixa contínua, pois terá medo de o infrator impetrar recurso (protelatório) e ele responder PAD por abuso de autoridade.



Desculpem, mas o sistema me leva a operar na lei do mínimo esforço.



PRFoxxx