Histórias de Rodovia: a heroína
Plantão anterior estávamos eu e meu parceiro retornando de atendimento de uma demanda próxima a Unidade Operacional PRF quando recebemos acionamento da Central informando acidente com vítima, a poucos quilômetros de onde estávamos.
Bem rápido chegamos ao local e logo visualizamos o cenário: 1 automóvel atravessado sobre a pista; outro veículo, uma caminhonete, fora da pista, próxima a uma árvore. Várias pessoas do local ajudavam a sinalizar, outros auxiliavam uma técnica em enfermagem e o condutor da ambulância da cidade próxima que haviam chegado antes de nós. Ah, não há Corpo de Bombeiros próximo! Esses 2 "socorristas" transportavam em uma prancha uma jovem senhora desacordada, enquanto ao lado caminhava seu também jovem esposo com uma criança de idade não superior a 2 anos, com seu corpo todo ensanguentado. Não só caminhava, como gritava: "foi aquele cara do Gol, culpa dele, policial!".
O "cara do Gol" logo foi localizado, ainda assustado e reportou sua versão do acidente para essa equipe PRF. Versão que posteriormente revelou-se consoante com a do condutor da caminhonete, bem como foi avaliada coesa com os vestígios observados no pavimento, caracterizando a dinâmica do acidente de trânsito.
Descrevendo o cenário: o veículo Gol realizava uma ultrapassagem sobre um caminhão (evadido do local), quando foi seguido pela caminhonete S10 (o que chamo de ultrapassagem cega); após concluir a ultrapassagem o condutor do Gol perdeu o controle da direção em virtude de irregularidades no pavimento (a pista está em reforma, sinalizada e eles já vinham nessa situação a aproximadamente 3 Km), quando a caminhonete S10 foi atingida lateralmente, fazendo com que seu condutor também perdesse o controle da direção, vindo a derrapar e sair de pista, capotando.
Ao descrever o cenário e acabar indo pra dinâmica, tento fazer com que imaginem o capotamento de uma caminhonete cabine dupla, carregada, com 3 ocupantes e numa velocidade provavelmente acima de 100 Km/h (uma vez que realizava ultrapassagem sobre um caminhão em declive)...
Conseguiu imaginar?
Não, tenho certeza que você não pode dimensionar o poder da inércia! A passageira do banco dianteiro Sra Sierra Fox e seu marido (e condutor) Sr Romeu Dobrado também não poderiam prever seu poder! Essa palavra inércia, cujo significado no contexto trânsito é sinônimo de tragédia, se fez prevalecer como nunca; se fez absoluta como sempre; se fez um Trebuchet para lançar mãe e filha pela janela da porta dianteira direita por meio da copa de uma árvore e repousarem a aproximadamente 10m da posição final do veículo. Repousar?!? A mãe repousou o sono eterno, enquanto a filha não dormiu, de tão assustada estava com o poder da alavanca da ignorância; com a ingenuidade de uma criança de menos de 2 anos que ainda não estudou física como seus pais (será que estudaram mesmo?); com a proteção divina. Divina é a mão que deve receber aquela jovem senhora no plano espiritual, pois aqui na Terra, restará sua filha a crescer precisando da mão de terceiros (com quem ela não tem laço umbilical) para seguir a caminhada.
É choro! Choro de criança que viajava sentada na cadeirinha (há muito estudada pelos técnicos para que pudesse oferecer segurança para esses seres tão frágeis) que fez com que a mãe se desprendesse de seu cinto de segurança logo depois de passar pelo posto PRF (enganação que atinge grande parte dos usuários da via) e retirasse do dispositivo de retenção/cadeirinha (com o veículo em movimento) aquela criança para acalentar. Bem, não deu muito certo... Aquele choro poderia ser evitado de diversas formas, poderia ter sido controlado de diversas outras, mas como a vida é feita de escolhas, Sra Sierra Fox preferiu fazer do jeito menos racional. Esse apontamento nem sou eu que estou fazendo, foi seu marido em depoimento horas depois do ocorrido, ainda sem ter a real noção do estrago irreversível da escolha de sua companheira. Pode até ser que aquela criança tenha parado de chorar ao ser retirada da cadeirinha, mas quantas vezes mais vai chorar sem sua mãe ao longo da vida??? Essa pergunta martela na minha cabeça continuamente desde aquele dia.
E onde é que entra a heroína na história, PRFoxxx? No discurso do Sr Romeu Dobrado, que ainda no hospital ao saber da morte de sua esposa (politraumatizada) começou a bradar que ela era uma heroína por ter se agarrado à criança quando na iminência do capotamento... Pode até ser que o instinto materno tenha feito diferença naquele voo de 2 corpos inertes no Trebuchet e a armadura daquela mãe tenha protegido a criança na queda, mas eu sinceramente acho improvável.
Considerada a distorção no termo heroísmo atualmente (depois que Pedro Bial chama BBBs de heróis, lascou tudo), para muitos pode até soar plausível o sr Romeu Dobrado pregar que sua esposa foi uma heroína, sobretudo porque ele deverá criar a filha falando que a mãe sacrificou sua vida por ela, MAS para mim (sem julgar), acho que irresponsabilidade não combina com heroísmo. Tivesse ela pedido para parar o carro em local seguro (neste trecho, em 18 Km há no mínimo 4 locais para isso, incluindo o posto PRF) e resolvido aquele choro, acalmado a criança e evitado o mal maior lá na frente. Tivesse ela doutrinado sua criança a viajar na cadeirinha sem resistência. Tivesse ela utilizado fatores de distração (só quem é pai/mãe sabe o poder de um vídeo infantil no celular, por exemplo). NUNCA tivesse ela optado por retirar sua filha daquele sítio seguro e transportado no banco dianteiro. NUNCA tivesse ela tirado seu cinto de segurança e virado uma estatística, deixando órfã aquela linda garotinha.
Heroína mesmo é minha mãe, que mesmo sem estudo e mesmo sem saber conceito de inércia, me ensinou que o correto deve sempre prevalecer! Ainda que as leis de trânsito não sejam perfeitas, nunca se deve negligenciar critérios de segurança, pois neste caso o detalhe (menosprezado por muita gente) faz diferença entre vida e morte.
PRFoxxx