CARTA DE UM EX-ALUNO PARA A TURMA BRAVO DO 38º CURSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE ESCRIVÃES DE POLÍCIA FEDERAL
Amigos da turma Bravo,
Venho hoje aqui falar-lhes algo que deve chocar a maioria: estou me desligando deste 38º Curso de Formação Profissional de Escrivão de Polícia Federal. Os mais chegados já imaginavam, pois confidenciei muitos dos motivos que me levaram a tomar esta decisão, outras pessoas suspeitavam por notarem a minha falta de motivação recente.
Sei que muitos estão se perguntando porque estou fazendo isso, já que todos sabem que sou um dos mais vibradores da turma e que nunca medi esforços para nada no caminho percorrido até aqui, mas a verdade é que sempre ouvi e li sobre a crise na PF, sobre a guerra entre deltas (delegados) e EPAs (escrivães, papiloscopistas e agentes), sobre a trava salarial, sobre o descaso do governo Dilma com a PF e a falta de reajuste da remuneração, mas sempre bati no peito e falei que nada disso me desmotivava, nada disso estragaria meu sonho de vestir a roupa preta de letras douradas, afinal de contas tenho vocação policial e não me via fazendo mais nada a não ser isso. Ademais, pensava que o Órgão estava em sua pior fase e que agora era a hora para melhorar e sair da crise. Contudo, estando aqui no curso e presenciando a mais uma tentativa frustrada de negociação do sindicato com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e o Ministério da Justiça senti algo que nunca havia sentido antes, senti o descaso do governo, a ausência de força política dos EPA`s e uma briga sem fim e sem nexo entre delegados e EPA`s, na qual os primeiros sempre saem vencedores.
Com mais essa luta perdida, na qual todos os EPA´s davam como certa a vitória, caiu minha ficha. Vislumbrei um futuro o qual não quero passar, um futuro no qual estaria morando na fronteira, sem nem saber onde ficaria, longe da família e amigos, com um ambiente de trabalho ruim, e ganhando um salário que não daria para atender todos meus anseios e de minha família.
Desculpem-me os que pensam que um EPA ganha bem comparado às outras policias, mas vocês estão enganados. Mudar para fronteira, na grande maioria fronteira do Norte, às suas custas e sem auxílio nenhum do Órgão, tendo que pagar aluguel, alimentação, passagem aérea para vez ou outra visitar a família, e, para aqueles que ainda têm filhos, pagar escola e alimentação destes, para isso são necessários muito mais que os ridículos 6000 reais líquidos (já incluindo o vale coxinha de cerca de 300 reais) que ganha um EPA 3a Classe.
Enquanto isso, carreiras que antes tinham salários que regulavam com o salário dos EPA`s há alguns anos, tal como Auditor da Receita Federal, atualmente ganham mais do que o dobro. Outras carreiras que antes brigavam pela equiparação de vencimentos com o subsídio dos EPA`s, hoje em dia, ultrapassaram e muito o subsídio destes, tal como oficial da ABIN, que hoje ganha 12.000 reais.
Se fosse há alguns anos, eu não pensaria duas vezes, iria pra fronteira sem medo e, caso não desse certo, estudaria para outra coisa. Entretanto, hoje já não sou mais um menino, tenho 32 anos, qualquer decisão minha repercute imediatamente na minha vida e não tenho mais tempo para cometer erros. Além disso, eu tenho um cargo público que me paga bem, o ambiente de trabalho é ótimo, é perto de casa e ainda tenho tempo para estudar lá. Arriscaria tudo isso pela PF, afinal de contas, essa é a minha vocação, mas tenho medo de arriscar nesse momento terrível pelo qual o Órgão passa e me arrepender por anos por ter cometido um erro.
Pode ser que eu me arrependa mais tarde, sobretudo se houver um fim nesta crise que já se arrasta há anos, mas prefiro correr esse risco a tentar algo novo e inusitado como abandonar tudo que tenho para tomar posse na PF, sofrer com o ambiente de trabalho e toda esta crise, e amargurar anos de arrependimento.
A mais recente derrota do sindicato foi a gota d`água que transbordou o meu copo, foi apenas a ponta do iceberg de um problema o qual não quero enfrentar. Mudar para fronteira, com brigas internas na Instituição, longe da família, pagando aluguel e diversas outras despesas, com um salário cada vez mais corroído pela inflação e sem perspectiva de aumento, subutilização da minha mão de obra, descaso do governo Dilma/PT, não reconhecimento dos cargos de escrivão, agente e papiloscopista como sendo de nível superior, tudo isso me fez analisar um futuro que, ao fazer uma ponderação com minha vocação, me fez perceber que vocação tem limite e que é melhor permanecer onde estou.
Como pode um Órgão exigir o nível superior para o ingresso no cargo, mas pela lei reconhecê-lo como nível médio? Sabemos que algumas vezes o sindicato não toma as medidas mais acertadas nas negociações, mas a questão de tentar reconhecer os cargos como nível superior sempre foi buscada pelo sindicato e o Governo sempre permaneceu irredutível quanto a isso, não querendo aceitar o pleito, indicando que nossos cargos são realmente de nível médio. Que incongruência é essa? Pessoas altamente capacitadas, com nível superior, tendo suas atribuições reduzidas a nível médio. Para que isso? Seria uma forma de justificar a trava salarial que impede que um EPA Classe Especial, fim de carreira, receba mais que um Delegado 3ª Classe, novinho?
E quanto ao reajuste anual do subsídio, que existe para corrigir os efeitos da inflação sobre os salários para que estes não percam seu poder de compra? Isso é um mandamento constitucional. Por que a lei não está sendo aplicada? A quem se deve recorrer neste caso? O Governo Federal pensa que é Deus para fazer o que quiser com uma classe, afrontando diversos direitos e garantias individuais e coletivos, direitos sociais dos trabalhadores e, consequentemente, desrespeitando a Constituição Federal. Sinto-me impotente.
Alguns podem estar se perguntando “Mas por que não termina o curso pelo menos, já que já estamos nos aproximando do fim deste?”. Todos sabemos que vivemos uma rotina “punk” aqui, com muitas atividades físicas, aulas teóricas, estudos, escassez de tempo, acordando todos os dias às 6 da manhã, com exceção da 6a feira que acordamos às 5:30 para o hasteamento da bandeira. Temos aulas até as 17:30, quando não temos até as 19:30. 2 meses aqui se parecem com 6 meses. Além de toda essa correria, ainda só temos um dia na semana para o descanso, o domingo, e que na maioria das vezes utilizamos para lavar roupa, fazer compras e estudar. Todo esse esforço e empenho vale a pena quando pretendemos concretizar o sonho de tomar posse ao final do curso, mas, como falei antes, meu sonho se esvaziou pelos motivos já expostos.
Diante de toda essa realidade, passei a me perguntar se seria válido continuar passando por todas essas provações e rotina desgastante, me privando de estar com a família e amigos, para ao final não tomar posse, mesmo porque estou de licença no meu Órgão anterior e posso retornar a qualquer momento e voltar a ganhar minha antiga remuneração. Com isso, passei a me sentir desmotivado, sem a gana que tinha no início do curso, não conseguia mais estudar e só pensava que estava perdendo meu tempo. E foi por isso que decidi pedir desligamento, pois sou uma pessoa que SEMPRE faz bem-feito as coisas, e, da maneira em que me encontro, não farei nada bem-feito.
Quero que saibam (mas creio que sabem muito bem disso) que não estou tomando essa decisão por fraqueza ou impulsividade, até porque todos sabem que sempre dei meu máximo nesse curso, seja no aspecto intelectual, seja no aspecto físico, e sempre tomei a frente de muitas atividades em prol da turma. Na verdade, foi necessária muita coragem para tomar esta decisão, pois estou abrindo mão de um sonho antigo pelo qual lutei MUITO e só quem já se propôs a enfrentar esse desafio sabe o quanto é difícil chegar até aqui.
Fui excedente do concurso de Agente de Polícia Federal em 2012, ficando em 573º, sendo que eram 500 vagas e convocaram até o classificado de número 511. Fiquei muito triste e senti uma dor imensa com essa eliminação, já que o DPF tem a política atual de não chamar excedentes. Contudo, após alguns meses de ostracismo nos estudos, voltei a estudar com intensidade e fui aprovado para este concurso. Por isso, digo-lhes que aqui não está falando um paraquedista ou um concurseiro que atira para todos os lados. Aqui há uma pessoa determinada e focada que SEMPRE teve como alvo a PF. Logo, saibam que não está sendo nada fácil desistir de tudo isso. Está sendo uma decisão muito difícil, e tentei muito retomar a visão romântica que eu tinha da PF para poder me encher de vontade e vibração novamente, mas não estou conseguindo mais.
E, por mais que seja difícil tomar essa decisão, sei também que Deus me capacitou muito neste caminho e pude perceber meu potencial, fui aprovado, ao final de todas as etapas, em 48º num dos concursos mais difíceis do país, com 84.000 inscritos, e por isso devo levantar a cabeça e seguir em frente, pois certamente Deus vai me honrar novamente com mais uma aprovação se eu fizer por onde.
Não me arrependo de nada que fiz até aqui, não considero uma viagem perdida, realizei um sonho que muitos tentam, mas poucos alcançam, que é ingressar na Academia Nacional de Polícia. Com a realização deste sonho, fiz muitos amigos aqui, aprendi a atirar, fiz mais de 700 disparos com pistola glock 9mm, revólver calibre 357 magnum, submetralhadora mp5 e calibre 12.
Todavia, não poderei realizar meu sonho de efetivamente me tornar policial federal, pois este sonho se esvaziou com todas essas brigas e crises institucionais, brigas inúteis que só destroem Órgão e não representam o que é a Polícia Federal. A Polícia Federal é maior do que todas essas mazelas, e isso me entristece profundamente, pois sempre foi meu sonho ser policial federal, lutei muito por isso e agora vejo a instituição numa situação que não condiz com sua magnitude. Mas nossos sonhos têm que nos fazer felizes.
Como mencionado anteriormente, fiz muitos amigos nessa jornada e, sobretudo, aqui na Academia, especificamente na turma Bravo.
Busquei no dicionário o significado da palavra Bravo e encontrei: aquele que afronta o perigo; corajoso; heróico; intrépido; resoluto; digno de aplausos. Esses termos descrevem com precisão essa turma, pessoas do bem, amigas, que se superam a cada obstáculo e ombro a ombro ajudam os demais a superá-los também. Como não lembrar das aulas de natação operacional? Todos tendo que fazer flutuação e simulando o auxílio a uma vítima. Todos estavam esgotados, sem conseguir nós mesmos flutuar, e mesmo assim permaneciam até o fim na tentativa de auxiliar as “vítimas”. Tenho certeza que vocês serão excelentes policiais e torço de verdade para que no futuro as coisas melhorem no Departamento, para que vocês sejam muito felizes na casa.
Havia duas coisas que me faziam repensar em ficar ou não aqui: meu sonho de ser policial federal e vocês. Amo cada um como se fossem meus amigos de infância, parece que os conheço há anos.
Acho que, por onde passamos, devemos deixar sempre um legado, uma marca, pois assim como disse Edmond Locard, através da formulação do princípio básico da ciência forense, no qual “todo contato deixa uma marca”, sei que deixei uma marca, ainda que pequena, nesse curso de formação e nos corações de cada um de vocês.
Lembrem-se sempre de mim como: o "Charlie" testa das aulas de corrida do grupo 1; o "Charlie" orador oficial da turma nos agradecimentos aos professores que encerravam suas matérias; mas, sobretudo, o "Charlie" vibrador e que tem nas suas veias o sangue policial.
É uma pena que o Departamento esteja dessa forma: interesses e brigas classistas sobrepõem-se aos reais interesses da Polícia Federal; Assédio moral com os subordinados na tentativa de demonstrar submissão; Governo Dilma, por retaliação às tantas operações que investigaram seus partidários, trata com indiferença e desprezo a Instituição pública mais respeitada pela sociedade levando-a gradativamente ao sucateamento e desmotivação dos seus policiais.
O que mais tenho visto e ouvido são amigos e conhecidos que já estão na “firma” e me dizem para repensar se quero mesmo entrar e que estão estudando novamente para outros concursos para poderem sair do Departamento. Isso é uma pena, pois estão perdendo policiais vocacionados, que amam a Polícia Federal e doariam suas vidas à causa policial, e, neste momento, a Instituição acaba de perder mais um que se encaixa nessa descrição, eu.
Charlie Romeo Charlie Myke Juliet
Ex-aluno da Academia Nacional de Polícia (XXXVIII CFP EPF)
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