Já dizia o ditado: quem é vivo sempre aparece!
Principalmente quando é parente e está precisando de um favor seu. Mas não é um parente qualquer e um favor atingível, dessa vez é um parente distante em todos os sentidos. Ele está tão longe, que encontra-se num mundo paralelo e não tem nem como dizer que está "fora da casinha", pois o termo a ele não se aplica. O favor, então, tão absurda como a forma que ele resolveu tentar para chegar até mim.
Seria um tanto interessante aqui fazer uma contextualização desse parente para mostrar o quão surreal é seu pedido de "ajuda", mas acho que eu me alongaria demais e daria muitos desdobramentos para a história. Digamos que é um primo de 2º grau e não tem contato comigo há muito tempo (quando tinha, eu ainda era um adolescente e ele não via potencial para me usar, hahaha). Eis que ontem a noite recebo uma ligação da minha mãe (sendo que tinha falado comigo no dia anterior e esgotado todos os assuntos possíveis) e já atendi preocupado achando que poderia ter acontecido alguma coisa importante, como a morte de algum conhecido ou algo do tipo. Na hora que vi a chamada cheguei a sentir algo ruim e piorou quando atendi com ela me dizendo ser algo importante e urgente: na verdade o "importante" é que não tinha acontecido morte ou algo sério com ninguém, graças a Deus. O "urgente" era no sentido de que eu me precavesse das investidas de qualquer outro parente quando da solicitação de passar meu número de telefone para esse primo.
A falta de escrúpulos
Mike Lima (nome fictício) ligou para minha mãe e solicitou meu número de telefone com whatsapp para que eu pudesse ajudá-lo com um "favor"; ela, sagaz que é, informou que eu estava em operação na fronteira e que estaria sem contato (antes estivesse). Como ela não lhe forneceu meu contato, ele então enviou uma novela, digo, uma mensagem de texto a ela e pediu que a retransmitisse a mim (o cara está empenhado!). A mensagem é uma narrativa de uma abordagem policial que culminou em detecção de irregularidades administrativas em seu veículo (aparelho de Cronotacógrafo sem aferição do Inmetro + parachoque em desacordo com o estabelecido pelo Contran), além de ele recebido mais uma autuação por uma ultrapassagem irregular (que originou a abordagem ao seu veículo em Santa Catarina), cujas desculpas foram ¹que o veículo ultrapassado estava lento, ²que a manobra foi feita com segurança, ³que a pista estava vazia e que de onde o agente estaria não tinha como confirmar a infração/local inapropriado.
Vamos por partes (adoro isso!): ultrapassagem é a manobra mais perigosa do trânsito, mais arriscada e que resulta em acidentes graves com danos severos/morte. Não é a toa que recentemente foi publicada norma qua atualiza os valores das autuações em função de fatores multiplicadores, visto o impacto dessa conduta para a segurança do trânsito. A ultrapassagem tem que ser iniciada e concluída dentro do intervalo de permissão (faixa seccionada), que não foi o caso dele. O fato de o veículo imediatamente a sua frente estar "lento" não é nem poderá ser base para a alegação de que "foi induzido a fazer a manobra". O fato de a pista estar vazia não desobriga o condutor a seguir o que prevê a sinalização (horizontal, vertical ou ambas), pois é de regulamentação: obriga-se o cumprimento, independente de outras circunstâncias. O local de onde o agente PRF visualizou a infração pode não ser, na visão do infrator, o mais apropriado do mundo, mas nunca será inapropriado para a caracterização da infração, até porque se assim fosse, o agente não teria como fazer a autuação por estar em dúvida; se estava no local e viu a manobra irregular, fará seu dever de autuar (Ato Administrativo Vinculado).
Como o choro é livre, na mensagem o primo faz um histórico do veículo, relatando que há 14 anos (Ford/F4000 com carroceria modificada e homologada) o veículo foi emplacado pelo poder público e não poderia estar com configuração irregular (Cronotacógrafo e parachoque). Ocorrem nesse meio tempo 2 situações distintas:
- Não é porque um dia o veículo foi registrado e emplacado que ele permanecerá daquele jeito e vá ser sucateado sem ter que se ajustar a uma norma que inova (sem prejudicar o administrado) e atualiza a legislação de trânsito (caso de exigência de Certificação do Inmetro para os aparelhos de cronotacógrafo - registrador inalterável de velocidade/tempo/deslocamento)
- Não é porque passou por vistoria de um Detran/Ciretran qualquer que estará 100% (fato comum esses órgãos fazerem "aquela vistoria" e deixarem passar cada "monstro" que vemos circulando por aí - vide luzes azuis, equipamento obrigatório em desacordo e etc).
As ilações
No meio da mensagem eis que o primo me mete um "não passou pela minha observação qualquer oportunidade para suborno de parte a parte, até porque não comungo com esse tipo de prática". Sim, primo, você é uma pessoa esclarecida e sabe muito bem que nosso trabalho é legalista e que se, por uma eventualidade o agente tivesse o ânimo de te corromper, não teria lhe "enfiado" esse monte de multas, acredito que ele iria direto ao ponto...
O tráfico de influência
Já que acabamos tocando no ponto de ilegalidade, o que dizer da pergunta dele: "você pode fazer algo para contornar esse, no meu ponto de vista, absurdo?". Primo, mais do que o PODER, a grande questão é o DEVER. Ainda que eu pudesse, não devia intervir neste e em qualquer outro caso de intervenção de colegas na pista, tanto por uma questão ética, quanto por uma questão legal. Ao chegar no plantão ontem, acessei o sistema e consegui consultar a placa do veículo e vi que o colega agiu com extremo profissionalismo ao recolher o documento (CRLV) do carro do primo Mike Lima, consignou, inclusive, o amparo legal (coisa que nem todo mundo faz) nas Resoluções do Contran e o prazo para regularização. Trabalho padrão!
Ainda que eu tivesse o ânimo de tentar te ajudar, se tem coisa que não admito é alguém interferir no meu serviço para tentar me dissuadir de fazer uma fiscalização bem feita. Como uma das boas coisas que aprendi a desenvolver na minha vida profissional (e pessoal) é a empatia, agora o que me resta é me imaginar no lugar daquele colega lá de SC que fez a sua abordagem. Sinceramente, eu não teria feito diferente...
Como você disse na mensagem, é bom mesmo tentar as "providências junto ao Denatran". Para a pergunta "o que você poderá fazer?", a resposta é: sugiro que estude um pouco as Resoluções 805/1995 e 406/2012 do Contran e faça um bom Recurso antes de "ir ao Denatran" para não poder passar vergonha e gastar dinheiro a toa. Acho que sai mais rápido e barato sanar as irregularidades dentro do prazo e apresentar o veículo para inspeção, recolhendo de volta o CRLV, mas como todo brasileiro adora um "Direito", o direito de recorrer está na sua mão e deve ser exercido.
PRFoxxx