quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Dia mundial em memória das vítimas de trânsito

Artigo: Dia mundial em memória das vítimas de trânsito


Introdução

Prezados e fieis leitores, resolvi publicar hoje um texto após ter sido provocado no twitter @PRFoxxx por uma publicação do @t24horas (Trânsito 24h - Clic RBS/Diário Catarinense) com o seguinte teor: Você já perdeu alguém em acidente de trânsito? Dia 17 é o Dia Mundial em memória às vítimas do trânsito. Dê o seu depoimento! #t24horas.

Essa provocação é oriunda da minha consciência, sobretudo porque recentemente fui uma "vítima do trânsito". Graças ao bom Deus eu estive na coluna dos "feridos" nas tabelas dos levantamentos sobre os acidentes de trânsito no Brasil. Muitos não tem essa "sorte"; em detrimento de tal fato no Brasil desde 2007 instituiu-se o Dia Mundial em Memória às Vítimas do Trânsito (veja mais em ONSV) como uma forma de tirar da inércia a sociedade que perde aproximadamente 50.000 pessoas em acidentes automobilísticos, predominantemente jovens e do sexo masculino, sendo 25% desse total em acidentes envolvendo motocicletas. O que se quer dizer tirar da inércia a sociedade? Difundir ideias sobre trânsito seguro, desencadear o desenvolvimento de políticas públicas e iniciativas pontuais em diversos segmentos da sociedade para se construir um consciente coletivo de preservação da vida.

O que essa provocação gerou efetivamente em mim? A necessidade de contar para o mundo (mesmo sendo muita pretensão) o que é sentir na pele um acidente de trânsito. A seguir relatarei alguns episódios emblemáticos pelos quais passa um Policial Rodoviário Federal; adiante, descreverei meu ponto de vista de "vítima", mesmo sabendo que haverá distorções provocadas especificamente por eu ser um profissional que lido com emergências. Tentarei ser sucinto e técnico, de modo que as ponderações sejam plausíveis.

A primeira vez a gente nunca esquece

Após 2 anos de serviço, pelos desígnios da vida, o meu "1º atendimento de acidente com vítima fatal" aconteceu fora do plantão.
O leitor se pergunta: mas como você passou 2 anos trabalhando numa rodovia sem atender a um acidente com vítima fatal? Coincidência (ou não), para todos os atendimentos de acidente que eu e minha equipe éramos acionados, invariavelmente eram envolvendo vítimas feridas; em 2 outras ocasiões nesse período houve mortos, porém fora do intervalo que se chama APH - Atendimento Pré-Hospitalar, ou seja, vieram a óbito no hospital.
Mas voltando ao assunto, quando falo que "a 1ª vez a gente nunca esquece" é marcante por diversos motivos, sendo o primeiro e maior deles o fato de eu estar no 2º dia de férias, por conseguinte, desprendido daquele estado de vigilância natural, com a cabeça voltada para situações distintas daquelas que estamos naturalmente focados (ocorrências de crime, acidentes e etc). O segundo motivo é em decorrência de o acidente ter ocorrido na minha frente, sendo eu a primeira pessoa a acessar o veículo e vítima em questão, uma vez que eu viajava no sentido oposto e estava prestes a cruzar com o veículo, que capotou diante de mim. O terceiro motivo é pelo fato de eu ter ali que realizar um atendimento de vítima ainda em vida e concomitantemente sinalizar o local, controlar o trânsito e isolar a área; isso tudo estando em zona urbana com aglomeração de pessoas, sendo uma curva com propensão de novo acidente e o pior: a paisana e fora da minha circunscrição.
Na ocasião não há espaço para outra atitude senão a de agir dentro do protocolo de atendimento. O fator emocional acaba protelado involuntariamente, pois se num lapso de segundo não me condiciono a agir, quem o fará?
Atendimento realizado; vítima em óbito no ínterim do acionamento à chegada do CBM - Corpo de Bombeiros Militar que, ainda que tivesse chegado em 1 minuto, não teria chance de salvar aquela vida que se foi em função de uma série de erros: condutor não habilitado, embriagado, sem cinto de segurança. Este último "erro" foi o determinante no resultado morte, visto que durante o capotamento (resultado de um "cochilo" do condutor - que eu vi deitar sobre o volante) seu corpo foi projetado e sua cabeça se chocou contra a coluna dianteira esquerda, provocando traumatismo craniano severo, que culminou em uma hemorragia irreversível, mesmo com atendimento imediato pelo CBM.
Motes: nunca estamos preparados para lidar com a morte. Ela pode acontecer a qualquer tempo, para isto basta estar vivo. Aquele condutor que "virou número" não escolheu aquele resultado, mas permitiu que acontecesse. Sobre o fator emocional deste atendente, mesmo com atraso, a consciência se revela e o impacto é forte. Ainda hoje, tendo treinamento específico para lidar com situações de Angústia Pública e situações de Crise (Psicologia das Emergências), o filme que se passa pela cabeça não deixa de me afetar.

Uma vida inteira pela frente

Um segundo caso que acho imprescindível para ilustrar essa publicação é o relato de um acidente de motocicleta acontecido com um jovem de menos de 20 anos. Incrivelmente era habilitado (em um município onde 98% dos condutores não o são), conduzia sóbrio (num sábado a noite, feriado, em que neste mesmo município é um "traço cultural" a condução de veículo automotor sob efeito de álcool e outras drogas), estava com sua motocicleta regularizada, sem impedimentos à circulação (no mesmo município pela falta de fiscalização, dentre outros fatores, a exceção é estar na regularidade) e utilizava capacete de segurança (e neste mesmo município, que não é na Bolívia - mas é como se fosse, é prática recorrente transitar em motocicleta sem tal dispositivo obrigatório).
Mas como se deu a morte deste jovem, "seu guarda"? Por causa do capacete... que estava sendo utilizado de forma incorreta: cinta jugular desconectada! Essa cabeça que não pensou, ou se pensou não pôde imaginar que "acidentes acontecem" (inclusive com a gente) e que um mínimo detalhe podem/vão influenciar no resultado morte.
Pois bem: socorrido ainda com vítima, aquele rapaz deixou a sua marca no asfalto; não os 20 metros da marca de arrasto da motocicleta, que transitava em alta velocidade quando ia transpor a lombada, mas sim a marca de sangue oriunda do TCE - Traumatismo Crânioencefálico em decorrência do uso incorreto do capacete de segurança.
Ainda no atendimento, ali na única e precária sala de cirurgia do hospital municipal, convidado a entrar e acompanhar o atendimento, ou a humanitária tentativa (pela falta de recursos), vi e senti os últimos suspiros daquele menino franzino, de feição serena e corpo em agonizantes espasmos.
Mote: não é possível descrever o misto de sentimentos daquela hora, ainda mais porque ao sair daquela unidade de saúde nos cabe o papel de informar a família, sem poder mentir ou omitir fatos de modo a amenizar sua dor, que a morte no trânsito fez mais um número.

Por um fio

Talvez este acidente seja emblemático para mim agora, pois foi o último atendimento com vítima fatal que realizei atendimento. Digo o "agora" pois sei que daqui a algum tempo ele passará a ser mais um dentre os muitos que terei em minha ficha na longa carreira que estimo ter na Polícia Rodoviária Federal. Isso não significa que deixará de ter importância, muito pelo contrário, pois cada evento acidente deixa cicatrizes nessa alma que existe dentro de uma carcaça policial, pois diferentemente do que muitos pensam, não deixamos de ser humanos quando vestimos uma farda.
Esse mesmo lado humano estava ali num Domingo de manhã, um fim de plantão em pleno Dia dos Pais, com mais outro nobre humano que compunha essa equipe de 2 PRFs, a realizar fiscalização de trânsito quando foram acionados para socorrer um vítima agonizante no asfalto. Cinco minutos de deslocamento até o local e lá estava ele, um pai que ia até a cidade vizinha visitar seu filho, mas que teve seu destino interrompido em função de possivelmente um cochilo, provocado por ingestão de bebida alcoólica na noite anterior. Não bastasse a embriaguez que gerou a perda de controle do veículo vindo a colidir frontalmente com um caminhão, o condutor não utilizava cinto de segurança.
Politraumatizado projetado na pista de rolamento, lá estavam os 2 PRFs a prestar os primeiros auxílios pré-hospitalares até a chegada da equipe de resgate. O status de inconsciência somado ao colapso dos órgãos internos (hemorragia detectada) e múltiplas fraturas resultavam num quadro surreal para qualquer ser humano em gozo de plenas faculdades mentais. Apesar de ser uma cena impactante, sua atipicidade soava como uma provocação para aqueles que ali se aglomeravam.
Mote: o fio de vida, um liame virtual entre as mãos do socorrista que segurava a cabeça da vítima como se não deixasse a alma se desprender do corpo, naquele momento se convertia numa crença de que é possível evitar a morte. Não somos onipresentes, nem devemos ser, mas a impossibilidade de cuidar continuamente de cada condutor individualmente ao longo de sua viagem na íntegra, impedindo que ele cometa erros, que ele mate e morra, nos leva a trazer conosco um peso na consciência por não ter impedido que aquele resultado acontecesse. Na contramão desse remorso, a lucidez nos diz que fazemos tudo que está em nosso alcance; diz ainda que mesmo assim as pessoas se esforçam para morrer. É cruel pensar assim, mas a realidade é que temos leis de trânsito são construídas de modo a reger parte das nossas vidas; explicitam regras de conduta a serem seguidas com um único propósito: preservar vidas. O conceito de certo é consolidado, opta pelo errado quem quer.

Todos somos humanos

E erramos! Por mais perfeccionista que seja, como eu, estamos suscetíveis a falhar, numa mínima coisa que seja, mas que o resultado pode ser inversamente proporcional. A pena é grande, pesada para carregar, ainda mais porque a dor maior é a da consciência; a ciência do erro. Poucos admitirão, pois é uma característica comum das pessoas procurar culpa dos outros - por mais que aceitemos que isso é uma pequeneza do ser humano.
Todos os argumentos aqui seriam inválidos para explicar o acidente no qual me envolvi, sobretudo porque eu estava errado. Mas estar vivo aqui e agora me permite contar a história e apresentar a percepção de uma vítima (quase fatal) de acidente de trânsito.
O erro, a desatenção, a velocidade (ainda que dentro do limite permitido pela via), a habilidade para lidar com o veículo (maneabilidade), a decisão do fazer/não fazer dentre outros fatores, todos num lapso de segundo, são um enredo curiosíssimo (e doloroso) que parecem um filme de curtíssima metragem. Não mais do que 15 minutos desde a colisão até o fechar de portas da viatura do Samu representam uma vida inteira, ou a perda dela. A perda tão próxima vista naquele minuto em que eu estava "esmagado" debaixo do carro (fui projetado para frente do automóvel e por ele fui atropelado), depois ficou tão distante quando várias pessoas levantaram o automóvel e me permitiram sair dali. Sentado e a espera de socorro, longos minutos de reflexão, de agradecimento a Deus, de geração de força para viver!
Motes: todos (ou praticamente) os acidentes automobilísticos são evitáveis. São ainda uma soma de erros, uma combinação única entre eles que resulta em fatalidade. Ninguém está a salvo de se envolver, portanto, devemos nos precaver e dispor de todos os recursos possíveis de modo a evitar e, no caso de impossibilidade, minimizar os danos decorrentes do evento. Reconhecer os erros e não repeti-los, crescer com eles e difundir conhecimento preventivo é papel de todos nós.

Conclusões

Não sejamos estatística. Se for para sermos números, que sejamos um contingente de multiplicadores de conhecimento. Que propaguemos os ideais de trânsito seguro, de preservação da vida. Que compartilhemos boas condutas, principalmente baseados em princípios de direção defensiva. Um trânsito mais gentil é necessidade imediata, um bem coletivo e salutar.
A perda desse absurdo número de cidadãos brasileiros, predominantemente jovens, é mais do que uma estatística, significa morte de muitas famílias que se vão junto com seus entes vitimizados.
É força produtiva descartada, são futuros interrompidos, são histórias que não terão um fim digno. Concomitantemente são a necessidade por cobrança do poder público pela sociedade; pois o investimento com os 3 pilares do trânsito - Educação. Engenharia e Fiscalização - estão muito aquém do que nossa sociedade merece.
Reflitamos e ajamos com mais urbanidade e cidadania.


Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito 2013


PRFoxxx

2 comentários:

  1. Li segurando a respiração, nunca mais quero ler sobre um acidente seu...

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  2. ufa, realmente a respiração fica curta...
    a vida é como um balão cheio de ar e basta um pequeno espinho pra tudo se acabar

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